terça-feira, março 28, 2006

Oportunismo de mercado










Um dos cartazes da manifestação “integração sem posse”, na capital paulista.

- “Oportunista, aproveitou a bobeira da zaga adversária e fez o gol”. Essa frase poderia ter sido pronunciada por qualquer locutor esportivo narrando um jogo de futebol. Nela, o sentido da palavra oportunista mostra a qualidade de um jogador capaz de tirar proveito da desatenção alheia e acertar a meta. De fato, uma das acepções dessa palavra está na “habilidade em tirar partido de circunstâncias ou fatos para a obtenção de algo”, como nos ensina o dicionário.
Uma busca pela internet e a palavra oportunismo, ou, oportunista, aparece em mais de 10 páginas. E fala, geralmente, sobre política e ou políticos. A mais densa e, talvez, que origina os outros discursos, talvez seja a do revolucionário russo W. I. Lênin, que, em 1916, escreve um artigo criticando antigos companheiros que tinham abdicado à luta de classes, ainda que a defendessem, em teoria. De lá para cá, a sede dos revolucionários das causas operárias cada vez mais encontra alívio nas coligações e composições com as estruturas e partidos da burguesia. E o oportunista traidor da causa social se torna uma espécie de jogador de futebol que pode chegar até à presidência.

Mas não só em futebol e política partidária que isso acontece, a palavra oportunista vem acompanhada de uma aura de malandragem que parece até designar-lhe certo charme, o contrário do otário, outro representante do imaginário que se construiu sobre a figura típica do brasileiro.
Para quem quiser saber os exemplos de como funciona essa engrenagem no Brasil, não pode deixar de ver o filme “Quanto vale Ou é por quilo?”, do diretor Sergio Bianchi. Na película, o diretor faz uma análise das ongs e das empresas que faturam sobre a miséria no país, traçando um paralelo com a negociação de humanos, na época da escravidão. Em um dos trechos do filme, duas senhoras, representantes de entidades filantrópicas, brigam pelos mendigos que encontram na rua, cada qual interessada em “assisti-los”, a troco de manterem suas instituições recebendo verbas. E é nessa toada que o filme passa por questões como a de empresas poluentes, ou escravagistas, mas com selo de “responsabilidade social” em suas logomarcas.

Esse olhar “oportunista” está tão impregnado em cada um de nós, que seria o caso de perguntarmos, também, até que ponto nossa desconfiança sobre tudo e sobre todos, não é, ela mesma, oportunista? O próprio filme citado está nesse fio de lâmina: não seria um oportunismo falar dos oportunistas? E o que poderia ser revolucionário – ou o contrário de oportunista – em um momento que o conceito de luta de classes parece imerso nas mãos de tantos “oportunistas”?
Em São Paulo, o governo municipal e estadual tentou retirar mais de 400 famílias de um prédio ocupado, na rua Prestes Maia. Coletivos de artistas têm se mobilizado para, junto àquelas pessoas, constituírem resistência até mesmo à força policial que reprime cada manifestação à base de cacetetes. O antigo proprietário do edifício deve mais de 5 milhões de impostos. Assim mesmo o poder público não quer vê-los no centro da cidade. Lugar de pobre, na concepção desses políticos, é a periferia. Quando muito. Mas nem tudo está perdido! Uma liminar do governo federal adiou a reintegração de posse ao antigo dono. E os artistas estavam lá, mais uma vez, como em outra vez tiveram, agora, também para comemorar. Assim como estão juntos em outras ocupações na capital. Resistindo com os menos possuídos. Aos que os chamam de oportunistas, por pegarem carona nos movimentos sociais, os artistas, simplesmente respondem com seus trabalhos, onde arte e atitude política caminham de mãos dadas. Quem quiser, pode acessar o site http://integracaosemposse.zip.net/ , da internet, que eu – “oportunisticamente” – busquei para escrever um texto sobre “oportunismo”.

Liberdade de expressão















Foto de Robert Mapplethorpe (1946 – 1989)



“Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós.”
Do Hino da proclamação da República

Direito à liberdade
Para um pais que viveu ditaduras – Vargas e Militar, pelo menos – ter assegurado direitos de liberdade de expressão, já é um grande passo: pensar e agir não mais são crimes, seja político, moral ou religioso, principalmente.
A desordem gera o caos, a entropia. A ordem gera a harmonia, ensina o Zen.
Mas entre o direito à livre expressão e a expressão livre, muitas camadas de opiniões ainda recobrem o ponto até aonde pode ir a liberdade de cada um. A máxima diz que a liberdade de um não pode ameaçar a liberdade do outro. E, também, que, liberdade exige compromisso, responsabilidade. Mas não seria isso uma contradição? O fato é que ninguém pode matar outro, em nome de seu direito de liberdade. Ou proclamar a ditadura, na Democracia. Ou desmerecer a cultura e a religião alheia, por intolerância.

Interpretações

Trotski, em seu manifesto de 1938, escrito no México, junto com André Breton, intitulado “Por uma Arte Revolucionária Independente”, diz que ao artista cabe o anarquismo, mas que toda sua produção deve estar voltada para o novo homem que surge da situação revolucionária. Seria o caso de se perguntar se, ao justificar o conceito de liberdade, é permitido, seja dentro de qual regime for, dizer ao artista que seu trabalho exclua, ao menos, uma ou outra possibilidade, porque isso poderia se transformar em uma espécie de manual de conduta, um cerceamento da criatividade. E toda a liberdade – mais do que do artista, do cidadão – estariam comprometidas.
Mas é de se pensar, também, que temos a obrigação de conservar a liberdade em nossas mãos, para que não nos seja imposto um modo de vida com o qual não concordamos.

Liberdade de direito
Muitas vezes esse discernimento não é tão simples assim. Foi preciso a Companhia de Tratamento de Água de uma cidade da França intervir em um trabalho de “arte”, quando um sujeito quis expor o vazamento de água de uma torneira, ralo abaixo, como obra de arte, durante o mês que sua exposição estava marcada. Quando entrevistado, o “artista” disse que seu trabalho era para chamar atenção para o desperdício de água no mundo. Um contra-senso!
Nesse sentido, é até interessante uma lei, na Europa, em que a propaganda de símbolos nazistas é proibida. Recentemente um antigo servidor do regime de Hitler foi julgado, por ter dito, tempos atrás, que o holocausto não tinha sido um crime. Acostumados a falar o que quiser, estranhamos o fato de que, na evoluída Europa, possa haver alguma espécie de censura. Mas o trauma da Segunda Guerra deixou a Europa apavorada. Sem contar que o sujeito processado, em questão, faz palestras, até hoje, para a juventude de extrema-direita onde quer que o chamem. Tem mais. Para quem pensa que o nazi/fascismo foi enterrado, a saudação nazista que os jogadores do time do Lazio, na Itália, fazem aos seus torcedores, não deixa dúvidas de sua existência. E, como todos sabem, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.
Aquilo que caberia ao artista revolucionário, de Trotsky, foi condenado na Alemanha, do Terceiro Reich, como Arte Degenerada. E muitos Klees, Picassos, e artistas do Expressionismo e do Dadaísmo foram banidos, presos ou jogados em uma câmara de gás, em nome de uma Arte Clássica, ou, Realista, como no caso da Rússia, nas mãos de Stalin, à época.

Democracia e Liberdade
Nos Estados Unidos, considerado a grande Democracia Mundial, muitos artistas tiveram que se calar, por seus trabalhos, dado a intolerância moral e comportamental de seus cidadãos. Em 1989, a obra de Andrés Serrano, artista nova-iorquino, “Piss Christ”, foi censurada, tendo à frente a campanha da “American Family Association”, porque o artista colocou um crucifixo de metal dentro de um recipiente com urina e fotografou a cena. Filmes como “Eu vos saúdo, Maria”, de Jean-Luc Godard, ou “A última tentação de Cristo”, do diretor Martin Scorsese, também foram vítimas de perseguição. E as fotos do artista Robert Mappletorphe – que depois de morto foi homenageado com várias retrospectivas – foram consideradas imorais à época, na década de 80, por mostrar fotos de situações homo-eróticas.
Desde o Romantismo, pelo menos, com a democratização da arte, gerada pela Revolução Francesa, os artistas vivem o paradoxo de, por um lado, ter a defesa da liberdade como princípio e, por outro, ter que prestar contas, seja ao mercado, seja ao Estado. E muito do que pode ser ou não mostrado, escrito, divulgado, ainda depende da conciliação de interesses, cuja Liberdade nem sempre é mantida conduzindo o povo, como no famoso quadro de 1830, de Eugène Delacroix.

quinta-feira, março 09, 2006

pelos muros da cidade
















Ilustração de Cláudio: assinatura escrita com traços originais

Pelos muros da cidade

“Cláudio” é o seu nome. Não precisa do sobrenome. Sua assinatura pessoal está estampada nos muros de Londrina, em cada pintura que faz. São impressionantes. Elas mantêm com o centro da cidade um embate, como se fosse uma guerra entre a imagem de arte, lúdica, dada ao deleite e as peças publicitárias, invasoras, dominadoras – como o impacto visual da publicidade de marcas de celulares em prédios históricos – poluindo a cidade.
Mas, enquanto a imagem comercial parece estar em terreno próprio, como se o uso da cidade fosse só para o comércio e o lucro, simplesmente, a outra esbraveja, afirmando, mais uma vez “o uso contra a propriedade”. E explora essa cidade, buscando em muros acinzentados e ásperos a textura própria de trabalhos em preto & branco, com mil e uma “manhas” com o bico do spray (“cada um custa 12 reais”, ele diz) cuja tinta sai mais ou menos densa, conforme seu desejo (ou a necessidade do desenho). O P&B, aliás, não é uma carência de cor, mas uma opção que torna mais trágica a imagem. Que lhe dá uma densidade dramática, em que a cor, no caso, poderia resultar em algo cômico. E embora suas imagens tenham uma aparência de histórias em quadrinhos, elas não nos fazem rir, exatamente. Elas nos indagam e projetam no espectador o desconcerto de um enigma: o que é que você está olhando aí, meu?

Quem vê os grafites de Cláudio nas ruas, em muros como o da Praça da Concha Acústica; ou no muro do estacionamento das ruas Pernambuco com Pará; no banheiro do Calçadão, perto do Ouro Verde e tantos outros, não imagina o cuidado com que são feitos. Cláudio projeta o que vai ser na parede. Namora o muro, passa por ali várias vezes antes de se decidir por realizar sua intervenção. Cria estratégias: a que horas chegar, com que quantidade de luz pode-se contar, etc. Sabe que, apesar do valor de seu trabalho, o grafite é visto como uma atividade clandestina, ainda se confunde pichação com grafite. Arte com vandalismo.
O desenho, já esboçado em papel, está pronto para tomar a rua. É hora do embate.
Embate, que fica evidenciado quando ele traça ao redor da silhueta do seu desenho uma linha branca, separando seu trabalho do caos urbano, ao mesmo tempo em que o reafirma, no absurdo de olhar o absurdo: a cidade inchada de gente, de prédios e de sujeira e o seu desenho/pintura/grafite a nos indagar sobre aquilo que olhamos. E, ao nos indagar, nos toma, melhor, nos rouba, como se fosse um marginal, um bandido, um delinqüente que nos aprisionasse, por instantes. Depois, engatada a primeira marcha do carro, partimos para o próximo sinal vermelho, dentro da cidade aberta.
Suas imagens geralmente contêm algo de propositalmente onírico, algumas delas com detalhes de talismãs junto a elementos tridimensionais, como se lutassem a ilusão e a realidade dentro do mesmo domínio plástico/visual, querendo vazar fora da parede onde foram pintadas. E nos agarram com suas precisas formas deformadas, sugando-nos com um olho que se agiganta, uma letra que escapa da lógica do texto lógico transformada em signo plástico, surreal.

O grafite urbano, em si, não é nenhuma novidade. Já foi usado e abusado. Virou senso comum. A maioria é chata e abusam da inteligência e do gosto de quem passa. Porém, o que chama a atenção nas imagens de Cláudio é a qualidade do traço. Qualquer um pode usar os muros da cidade e fazer a pichação que quiser, criando seu próprio “tag”, sua marca. Mas a “assinatura” de Cláudio é seu próprio desenho: com nome e sobrenome.
Não são grafites de protesto. São grafites de atitude. Ao “roubar” o imaginário do passante, faz da cidade sua sala de exposição, um museu aberto. Retirando da matéria fria de paredes surdas e cegas um pungente traço de humanidade.