Van Gogh da internet frustra o gênio van Gogh
A história da arte, como coloca Arthur Danto, em
Após o Fim da Arte,
é um longo processo de mimetismo, de 1300 a 1900. Ou seja, seu
caráter é representacional, imitativo, buscando, ao longo dos
séculos, aparentar a realidade visível. Clement Greemberg aponta,
em seus textos, como a perspectiva, as luzes e as sombras, escorços
e proporções fizeram a pintura tentar fazer o papel que sempre foi
questão da escultura e não de seu próprio meio. À superfície
bidimensional da tela não comportaria representar o que era da ordem
tridimensional. E Sir
Ernest Gombrich nos mostra a evolução das formas nas artes visuais,
até seu rompimento com a ilusão, mostrando como o impressionismo e
o pós impressionismo são partes desta história que Vasari já
vivia e escrevia, in natura,
com os renascentistas.
Dias atrás recebi um email de meu irmão, que é
médico, com um arquivo ppt
anexado, que mostra obras de Milliet que van Gogh havia copiado e
usado em suas pinturas. Normalmente os ppts
do meu irmão reproduzem um padrão de gosto que são frontalmente
diferentes do que entendo do que vem a ser arte e senso estético. E,
muitas vezes, quando vejo que os emails dele não são pessoais, não
me entusiasmo a abri-los. O volume de informações que a internet
produz obriga-nos a filtrar nossos interesses mais específicos. Não
costumo enviar a ele notas sobre saúde, e acho peculiar seu prazer
em compartilhar comigo assuntos que ele julga artísticos. Isso
mostra que a beleza não é um assunto assim tão inútil quanto
enfadonho. No caso do citado arquivo, abri, vi, e fechei, sem me
colocar maiores considerações. Apenas entrei em alguns sites para
conferir se as imagens eram, de fato, de Milliet e van Gogh. E eram,
de fato. Depois, conversando ao telefone assuntos familiares, meu
irmão me pergunta sobre o tal email: « Você chegou a abrir o
email do van Gogh que eu lhe enviei? ». « Sim »,
respondi. « Você tinha ciência que o van Gogh copiava outros
artistas? ». Eu respondi que não sabia, mas sei que os
artistas usam as imagens de outros artistas como referência para
seus próprios desenhos. Fazem releituras, revem o trabalho que os
antecedeu. Que isso é normal em arte. Senti, em todo caso, que a
resposta não convenceu. Na sua concepção de história da arte,
aquela notícia da internet talvez traísse sua concepção de
artista genial com a qual construíra a visão sobre van Gogh.
Mudamos de assunto, mas agora era eu quem havia me inquietado. Não
porque a auréola do artista pudesse estar sendo arranhada, ao
contrário, porque aquela informação sobre cópia, havia humanizado
a visão que temos do gênio van Gogh e do mito de louco romantizado
que a história da arte, em alguma medida, ainda cultiva sobre os
artistas. Afinal, a cópia, para quem tem a obrigação de ser
original, suspende a crença devocional e insuspeita de superioridade
naturalizada e, ao mesmo tempo, traz a dúvida para uma dimensão
antes inquestionável. Afinal, o dom, pendor ou o talento parecem
opostos aos esforços de aprendizagem, aos estudos sistemáticos, aos
exercícios diários, além da obrigação de regras que todos nós,
mortais, somos obrigados a seguir quando queremos alcançar algo em
nossa vida. Pior, ainda, para o pintor holandês. Porque aqui ele é
acusado de plagiador, de copista, de um medíocre sem criatividade
nem para inventar seus próprios temas. E isso, para nós, é um
crime previsto até em lei. No entanto, copiamos o estilo do cabelo,
da roupa e até do jeito de ser do artista de cinema, tv ou do ídolo
do esporte. Ainda assim, se nos perguntam sobre essas coisas,
justificamos dizendo que esse é o nosso 'estilo'.
É famosa a frase atribuída a Picasso – outro considerado gênio –
que « o artista ruim copia. O artista bom, rouba ». De
fato, a frase, como uma boa blague, é desconcertante. E, nesses
nossos dias onde a imagem, a mensagem e a informação circulam
velozmente e nem sempre fiéis às suas origens, a frase de Picasso
faz muito sentido. A cultura 'Ctrl c + Ctrl v' – o hip hop, o mix
informacional, enfim, a própria colagem nascida do cubismo – torna
tudo reciclável. De original, apenas o modo de se apropriar e
processar os bites e pixels na tela digital. Novas imagens de Frida
Kahlo inundam todo dia as redes sociais, sejam em poses sensuais, ao
lado de revolucionários, pintando na cama, etc. São imagens em
preto e branco e tratadas com se fossem da época da própria
artista. Como não vêm assinadas e as fontes são omitidas, é
possível imaginá-las saindo secretamente do arquivo de algum
pesquisador apaixonado, diretamente para as páginas do facebook. Eu
mesmo compartilhei uma dessas fotos, sendo alertado, nos comentários,
por um outro usuário da rede, que aquelas imagens não deveriam ser
'originais'.
Voltando ao caso van Gogh, segundo a frase de Picasso, nem bom
artista o coitado era. Porque é acusado de cópia e não de roubo.
Roubo seria o 'desenho apagado', de Rauschemberg, que comprou um De
Kooning e fez de seu gesto uma atitude de arte, usando a fama do nome
do outro para fazer a fama de seu próprio nome. Se isso não é uma
atitude de gênio, ao menos é um tipo de roubo que, segundo a frase
atribuída a Picasso, torna Rauschemberg “um bom artista”. Digo,
roubo da imagem do outro.
Mas na época de van Gogh essas questões ainda não haviam sido
colocadas. Aparentemente. Até pouco antes da época do pintor de
Arles, precisamente até o Impressionismo, o que valia era a imitação
do real visível imediato. Foram os impressionistas que entenderam a
mudança da luz enquanto buscavam fixar a imagem na tela. Foram eles
que deram à arte, ou melhor, à pintura, o aspecto de inacabado,
porque eles estavam interessados em captar um ambiente, uma sensação
e não uma aparência de realidade. Enquanto o pintor clássico
tentava fixar a sombra no rosto de uma pessoa, a noite já tinha
caído e a imagem, desaparecido, ou a sombra tinha mudado de aspecto
e de lugar. Mas van Gogh, Cezannè e Gauguin são
pós-impressionistas. Não estão mais interessados nas sensações
do ambiente, mas na verdade da pintura. Por esta verdade sacrificam a
aparência das imagens do mundo. Obrigam os objetos, retratos e
paisagens a se conformarem à composição do quadro pintado.
Modificam a cor das coisas, a luz do ambiente, fazendo com que os
elementos se organizem no espaço retangular e bidimensional –
plano – da tela. A pintura não é uma observadora particular do
mundo, ela se faz mundo, como uma pedra, um rio, um pensamento, um
sonho, uma máquina. Ela se objetiva por ser o que é, e não por ser
outra coisa além.
Lembremos que Cezannè era assíduo frequentador do Louvre, onde
copiava os mestres da antiguidade. Que outros artistas fizeram isso,
também. Lembremos que o famoso e revolucionário quadro pintado por
Manet, em 1863, “Almoço na Relva”, tem sua composição baseada
em outras duas imagens, de mestres do passado. Para van Gogh, o que
estava em jogo era a verdade da própria pintura, de sua pintura, e
não a aparência com a realidade, sua habilidade imitativa de copiar
e representar o visível. Daí que, na composição de seus quadros a
pincelada fica evidente, a cor se abre sem nenhum interesse pelos
aspectos externos à composição, a tinta preta marca as diversas
áreas de cor, seccionando e, ao mesmo tempo, integrando os espaços,
na tela. Criando ritmos. As questões de pintura assemelham-se mais
às questões da música do que qualquer outra arte visual do
passado. Diante disso, as imagens de Milliet, que originaram as de
van Gogh, são de uma qualidade diferente e, até, menos 'originais'.
Ainda que o grau de realismo dos quadros copiados expressem
sensibilidade para a questão social, pelos temas escolhidos para
serem pintados e que as figuras sejam mimeticamente mais próximas da
aparência imediata, a realidade dos quadros do pintor realista são
menos reais do que as do pintor pós impressionista. A importância
da obra de van Gogh é de outra qualidade porque – nas palavras de
Rodrigo Naves – sua pintura se faz “carne”, enquanto Milliet se
debate – até por condições históricas – tentando agarrar a
aparência das coisas visíveis.
A contribuição deste debate, para nós, contemporâneos, é a de
desfazer a imagem de gênio maluco (e otário) que as enciclopédias
de arte sempre nos mostraram sobre van Gogh e, por extensão, dos
artistas, de maneira geral, vistos como seres que orbitam outros
espaços que não o nosso. São mortais e comuns, ainda que possam
estar obcecados por suas pesquisas. O que estava em jogo, no momento
em que trabalhava, era a descoberta da percepção e do sentido
dentro dos próprios quadros pintados. Não é a forma, que já havia
sido conquistada pelos clássicos o foco do interesse das pinturas do
holandês que cortou a orelha (e, menos ainda, sua vida
transtornada), mas a formulação de princípios dentro da realidade
do quadro. E é aí que reside o interesse pela sua arte, até hoje.
A ideia de originalidade, na arte, foi construída
pela história para valorizar o produto do artista enquanto
mercadoria. A própria ideia de arte, que temos hoje, é bastante
recente. Ela nasce com o fato da pintura poder expressar semelhança
através do uso da perspectiva, do controle da proporção, da
aquisição de técnicas que se somam à essas descobertas. Com
Petrarca, a cabeça de um homem é comparada à cabeça de um
alfinete, vista de longe. Antes, isso era impossível ser expresso. E
a cópia era a norma corrente. Depois, a arte passa a ser assinada,
como produto autêntico. E o que passa a valer é a documentação da
originalidade do trabalho. Quando não, são os especialistas que
devem emitir seu juízo científico para dizer se o quadro encontrado
no fundo do armário tem valor ou não. Com o Modernismo, a situação
se modifica, porque a qualidade de uma pintura não é mais medida
pelo seu grau de verossimilhança com as coisas visíveis e
comparáveis aos seus pares de época. E chega-se a um ponto em que,
quanto mais bizarro e estranho, mais artística a ação ou a obra se
torna. Mesmo assim, as comparações continuam para saber quem copiou
quem. Por sorte, entre o início do Modernismo e o surgimento da
internet, o historiador da arte e da imagem Erwin Panofsky teorizou
sobre o que ele chamou de pseudomorfismo: “O surgimento de uma
forma A, morfologicamente idêntica a uma forma B, que, no entanto,
não mantém relação alguma do ponto de vista genético”1.
Ou seja, a motivação que as trazem ao mundo são de ordens, gaus e
princípios diversos.
Van Gogh, não por culpa sua, incorpora todos os esteriótipos que
acostumou-se atribuir aos artistas. Não é o caso de se levantar
pelo direito de ver sua arte purificada de toda a cifra que passou a
valer, de toda a loucura que foi sua vida, de todo os escândalo que
a sociedade da época estava disposta a fazer, mas de entender a real
importância de sua obra como precursora de um modo de ver, sentir e
pensar o mundo.
Referências:
ARGAN,
Giulio Carlo. Arte
Moderna. 3 ed. São Paulo: Cia
das Letras, 1999
BOIS,
Yve-Alan. Conferência inaugural. Anais
do XXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. FAAP –
outubro 2006. Belo Horizonte:
C/, 2007.
COTRIM,
Cecília et FERREIRA, Glória. Clement
Greemberg e o debate Crítico. Rio de
Janeiro: Zahar, …..
DANTO,
Arthur C. Após o fim da arte.
São Paulo: EDUSP, 2006.
GOMBRICH,
Ernest. História da Arte.
….
1A
presente citação foi pinçada do texto de Yve-Alan Bois, « A
questão do pseudomorfimo: um desafio para a abordagem formalista »
(2007: 13).
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