quinta-feira, maio 24, 2007

Cidade dormitório




Visão parcial do trabalho de Guga Ferraz, em exposição nas paredes externas da Galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro.

Já conhecia algumas coisas que ele tinha feito, como o adesivo para grudar em placas de sinalização nas paradas de ônibus. Sobre o desenho do ônibus, nas placas, era adicionado um outro desenho, de fogo, deixando o ônibus em chamas. Isso bem na época em que começaram a incendiar os ônibus no Rio de Janeiro.
Outro, tão ácido quanto, só que mais irônico: o desenho do Bush impresso sobre panos de chão. Coisa bem popular. Para quem não gosta do presidente dos EUA – cerca de 80% da população do planeta – este é um adereço indispensável para se ter em casa!
Mais um, só para ilustrar o texto. Simulando o desenho de indicação da saída de emergência colado nos vidros de ônibus, ele fez outro em que, no lugar da mão que empurra o vidro, há uma mão segurando uma arma. E, depois, escrito em baixo: "em caso de assalto, não reaja!".
Sabia da sua ligação com o Zona Franca, uma ação coletiva de chamar artistas para mostrar trabalhos experimentais, na Fundição Progresso. E, também, que ele é um dos editores da revista de arte O Ralador. Além de participante da ação de colar cartazes lambe-lambe, do coletivo de arte Atrocidades Maravilhosas.
Por aí já dá para sentir seu engajamento artístico e sua postura de enfrentamento com a realidade. E, até uma das características de seu trabalho, a repetição serial. Seja como impressão, gravura, ou como células que se desenvolvem, se multiplicam. Por exemplo, uma de suas proposições, intitulada "Coluna", em que várias pessoas – uma sobre o ombro da outra – faziam as vezes de sustentação de edifício, pode ser considerado um desses casos.

Repetição. Uma das portas para entender seu trabalho. Pois é disso que o artista tirou partido para criar seu "Cidade Dormitório", na parede da Galeria Gentil Carioca, na região central do Rio de Janeiro. Lá, em plena integração com a arquitetura do local – exteriormente suja e abandonada – a Praça Tiradentes, hotéis de baixa reputação e o Centro Cultural Hélio Oiticica, Guga crivou um "beliche" de 08 (!) andares.
Oferecendo um equipamento urbano a quem quiser passar algum momento – ou fazer qualquer outro tipo de ocupação – descansando em um dos "cômodos" dessa estrutura de ferro, com grades de madeira e chumbada à parede. E com colchonetes em todos os andares. Algo que lembra o minimalismo – pela pureza e repetição formal – mas zomba da história da arte.

Tal instalação de rua leva a pensar, primeiramente, na questão do déficit habitacional que impera no país, em geral, e, no Rio de Janeiro, em particular. E poderíamos ser induzidos a crer que o trabalho é um protesto do artista contra o estado de indigência que grassa pelo centro da cidade. Pode ser. Qualquer mendigo que quiser se apossar de um dos "quartinhos" pode fazê-lo, pelos próximos quatro meses, que é o prazo para a obra permanecer no local. Pelo menos é essa a intenção: de uso, de ocupação.
Sugere, também, tratar-se de uma mimese de um conjunto habitacional popular qualquer, como esses "ninhos de pombos" que se constroem, cada vez mais, para pessoas que podem pagar cada vez menos. E, já que a questão é tratada pelo viés da arte, aquilo pode ser um prédio qualquer, ou, mesmo, um brinquedo lúdico. Ou mesmo como uma proposta de nomadismo como estilo de vida. Um dia dormir aqui, outro dia lá, e assim por diante.
(Passando por ali, uma noite, dois dias depois da inauguração da exposição, as crianças do bairro e a polícia que vigia o local queriam saber o que era aquilo. E acabaram achando divertida a idéia daquele objeto. Logo as crianças fizeram dali seu brinquedo. E os guardas foram embora.)

O fato é que não há nesse e nem nos outros trabalhos de Guga Ferraz algo tão filantrópico ou lúdico, propriamente, como há nos trabalhos do artista polonês Wodiczko, que faz equipamentos urbanos para indigentes. Ou, no trabalho de Vito Acconci, um artista dos Estados Unidos, que fez um equipamento urbano, dentro do evento Arte Cidade, em São Paulo, colocando sanitários, banheiros e oferecendo um local para os homeless descansarem. A crítica de Guga é mais ácida. É mais irônica. E a ambigüidade entre o funcional e o estético, equipamento urbano e sarcasmo, no mínimo faz qualquer pessoa pensar a respeito daquilo de forma desconfiada. Não perguntamos se o que vemos é arte. Perguntamos sobre aquilo que vemos.

Finalmente, há que se pensar nos riscos desse tipo de trabalho, de embate com a realidade, que não possui a possibilidade de recuo, uma vez colocado em circulação, nem de ser refeito, como uma pintura ou uma escultura. Menos, ainda, de ser escondido no porão de casa, caso não tenha ficado ao gosto do artista. Esse enfrentamento com o suporte “vida” é que o torna instigante, desafiador, pois, ao levar em consideração o contexto onde a obra é exposta, permite uma aproximação com as pessoas, dentro de questões que lhe são pertinentes, e não como arte cujos códigos nem sempre podem ser acessados por um público não especializado. Esse, de fato, o desígnio.

(mais imagens de Guga Ferraz em: http://www.agentilcarioca.com.br/indexpor.html)

Paisagem inútil





"Campo de trigos com corvos" (1890), de van Gogh: paisagem desesperada em sua última pintura

"História: Aqui está um homem / Aqui está um cadáver / Aqui está uma estátua."
Joan Brossa

Depois de passadas tantas crises. Depois de tanto tempo esperando. Depois de ter conseguido domar a fera da revolta e da indignação que habitava seu peito, descobriu que não tinha mais nada a oferecer, então. Sua terra estava devastada. Aliás, perdera o direito a ela. Tinha sido expulso do Paraíso. Perdera sua Bela Vista. Agora só restava a paisagem desértica.


Mas o deserto não se resumia a um só lugar. Mas às idéias. E aos seus ideais, pelos quais um dia lutou. Apesar de tudo não podia desistir da vida, como fizera van Gogh depois de pintar "Campo de trigo com corvos", mas a imagem era similar. Não porque tinha vontade de continuar resistindo, mas porque lembrou-se de seu pai que dizia que "o problema é aonde cair vivo, não aonde cair morto". Riu, incomodado com o pensamento. Mas tinha medo da morte, também. Em caso de suicídio, sempre pensava, levaria mais uns vinte para o inferno, juntos com ele. E escolhidos a dedo. Na paisagem em que deveria colocar sua assinatura, havia ratos e não corvos. "Ratos não se transformam em humanos, mas, cada vez mais, humanos se transformam em ratos", tentou filosofar.


Em seu delírio, ainda balbuciou algo assim compreendido: "dominado pelas leis de mercado. Encurralado pelo discurso do progresso. Preso à histeria do consumo. Hipnotizado pela idéia fixa de que o trabalho é sagrado. De que a produtividade é redentora. E de que a tecnologia irá nos libertar para a exploração de outros Novos Mundos, a única coisa que o dito 'cidadão civilizado' quer, de fato, é vender ratoeiras e queijos". E mais: "esses ratos que não são ratos não se contentam apenas em vender. Querem controlar. Controlar para lucrar. Eis aí a utilidade do poder! Eis aí a consciência suprema que pode um rato-não-rato atingir!"
Era improvável, de qualquer modo, a busca por alguma inspiração mais altruísta. Já não podia e nem queria pintar outra coisa senão aquela cena catastrófica. Sentia-se como o andarilho que caminha sozinho, errante pelo mundo, despertando desconfiança por onde quer que passe. Um homem que questiona muito pode revelar algum aspecto podre, que ele traz dentro de si, nos outros. E isso pode gerar uma entropia perturbadora. O caos passa a ser ele, ao invés da situação.


Desistir não podia.


Talvez a tarde trouxesse alguma brisa, para aliviar o calor. Talvez tivesse forças para inventar uma paisagem encomendada para uma ocasião menos grave, embora o pêlo de seus pincéis, ressequidos pela tinta de tonalidades cinzas, denunciassem um abandono definitivo da idéia de pintar. E o que restava era apenas um quadro onde ratos pareciam se sentir à vontade com aquela paisagem inútil.

Manisfesto do DIA DO NADA 2007





Passando o recado

Lançamento da proposta para o DIA DO NADA 2007

Não custa lembrar:

O DDN cai sempre na primeira segunda de maio. Este ano, portanto, cai no Dia 07 de maio. Segunda-feira.

Definição simplista:
DDN não é contra o trabalho. É contra o trabalho desprazeroso, mecânico, robotizado, escravo.
Questiona a mais-valia e o lucro, sob todos os ângulos e hipóteses.
Descrê do progresso industrial e do uso da tecnologia eletrônica como evolução da espécie.
Ri do processo civilizatório.

DDN não é para NÃO fazer nada. O desafio, aliás, e este. A idéia é: fazer nada.
Tudo é trabalho. Tudo dá trabalho. Trabalho, em física, é a energia gasta por um corpo para se movimentar entre dois pontos. Portanto, enquanto o coração bater, existe o trabalho. E a idéia do Nada e do Vazio colocada em movimento como uma ação não cartesiana, melhor, como poética, é a questão.


Constatação
Por causa do Efeito Estufa, gerado pela emissão descontrolada de gases poluentes na atmosfera, principalmente CO2, a temperatura do Planeta está se elevando. O clima está se alterando, as estações do ano perderam suas definições. As águas de março ainda não chegaram e, mesmo em maio, o verão ainda não foi fechado.

O paradoxo quente
Voltemos à Física: se as partículas ficam em movimento constante, em atrito permanente, a velocidades cada vez maiores, então os corpos tendem à combustão, gerando cada vez mais calor. Esquentando mais, faz-se necessário, na nossa sociedade de mercado, um maior uso de refrigerador, ventilador, ar-condicionado, enfim, não queremos abrir mão do conforto industrial que deus nos deu, certo? Acontece que isso acaba gerando um maior gasto de energia, aumentando, assim, o calor. E Eis, assim, montado o paradoxo que nos coloca, a todos, dentro de um circuito vicioso cujo fim não precisamos de nenhuma lâmpada mágica para adivinhar seu desfecho.

Visão crítica
Para Al Gore e para os mercadores da vida o desastre ambiental representa Eco_dólares. E se aproveitam do calor que está fazendo para ganhar mais dinheiro vendendo ventiladores. Ou fazendo projetos mirabolantes como a construção de guarda-sóis no espaço, sucção do CO2 da atmosfera usando como depósito as reservas exauridas de petróleo, etc. Fazem acreditar que a tecnologia de ponta pode resolver o problema do desastre ambiental e que podem resolver o problema mundial por cada um de nós. No máximo, propõem a troca do uso de produtos mais poluentes, por outros, novos, modernos e “ecológicos”. Como se o material usado na fabricação desses produtos e o lixo dos outros, descartados, não interferisse, ainda mais, no problema ambiental.

O que é preciso pensar, em primeiro lugar, é que nossa cultura foi toda construída sobre os alicerces do domínio à natureza. E nunca de integração. O homem civilizado, ocidental, greco-judáico-cristão, sempre viu a si próprio como alguém na paisagem, mas nunca como alguém da paisagem. A natureza sempre lhe foi o fora. E o dentro sempre foi aquilo que ele construiu para vencer a natureza, chegando ao ponto que estamos vivendo agora, que é a de perder todo o contato e relação com ela e recebendo de troco um delicioso “tchau, humanidade, vocês são uns chatos”.


Proposta do DDN
Desmontar o discurso catastrofista dos apocalípticos que lucram com a miséria humana (neopentecostais, niilistas de plantão, comunistas endinheirados) e dos conformistas que acham que “isso não vai mudar nunca”, é uma maneira de tornar o problema menos insolúvel. Deter imediatamente a voracidade consumista, então, já é caminhar, a passos largos, em direção a um outro tipo de relação do homem com a natureza. Isto é, de integração e harmonia.
Mas não basta apenas desligar o ventilador durante quinze minutos e ficar de braços cruzados, com tédio e raiva, passando calor. É preciso que o espaço e o tempo sejam utilizados de maneira criativa e lúdica como resposta vital a esse modo de viver que nos quer reféns do impulso de morte. É possível utilizar as energias emanadas pela própria natureza, a nosso favor, sem ter de gastar um centavo por isso. Ao contrário, para nos humanizar através delas.
E o que nos torna mais profundamente humanos é a nossa capacidade de compreender a realidade e rir, quando, ao invés de nos lamentar pela situação ou de nos perder em abstrações intelectualizadas, agimos.

Questão concreta
Para o DDN, tanto quanto para a filosofia oriental e para a cultura indígena, agir é não-agir. É deixar acontecer. Como na Capoeira de Angola. Como no Judô. Usar a força, o impulso e o movimento do oponente, contra ele próprio. A nosso favor.
Eis o devir do vento, portanto, dando movimento a essas palavras. Não só a hélice do ventilador, no caso acima descrito, para combater o calor. Mas a vela do barco. Aqui, brincando com as folhas soltas das palavras da árvore-idéia, como uma aposta no lúdico.

Recado dado
Semana passada, na casa do Jarbas Lopes – que tem uma chácara em Maricá, cujo limite de sua propriedade é uma falésia, um corte abrupto na faixa de terra, que dá diretamente em uma lagoa formada por uma cadeia de montanhas, perto de Niterói – veio a solução do paradoxo do ventilador, que me assaltava desde que comecei a pensar em um tema para o DDN deste ano. Ou seja, o que propor para alguém fazer no lugar do ficar embaixo do ventilador desligado?
Foram as próprias crianças, sobrinhas e filhos do Jarbas, quem resolveram o problema. Não que elas soubessem de toda essa elaboração mental. Não é isso. O que aconteceu foi que havia várias redes de dormir – com mosquiteiro e tudo – lá e as crianças pediram ao Jarbas para dormir fora de casa, nas redes, dependuradas na árvore que fica perto da falésia. E foi uma festa. Amarramos umas seis redes na árvore e passamos a noite lá, entre a brisa que suavizava o calor que fazia e a paisagem imponente, ao longe. Sons, só de coruja, de vez em quando, e causos, que foram contados até as crianças pegarem no sono.
Como um recado dado, o DDN me apareceu com essa idéia pronta. E eu só tive o trabalho de contar o que aconteceu, embalado pelo vento.







Tempo quente




Plantação de árvores, de "7000 oaks", de Joseph Beuys: projeto iniciado em 1982 e completado postumamente, em 1987.



Um paradoxo
Enquanto aguardava a fila do caixa do supermercado, uma senhora, se abanando com uma folha de papelão, olhou-me desconsolada e disse que o calor estava demais. Vi todo o aparato funcionando à nossa volta – iluminação, ar condicionado, ventiladores, motores elétricos – e fiquei pensando que aquilo gastava grande quantidade de energia, fazendo aquecer ainda mais o planeta e obrigando, por sua vez, o aumento do consumo de energia para o funcionamento de ar-condicionados, refrigeradores e ventiladores...

Deter o consumo, não a redução de danos
Os fabricantes têm se esmerando em produzir novos modelos de aparelhos eletrônicos que gastem menos energia, ou de carros e meios de transporte que gastem menos combustíveis. Mas como estamos nas mãos do mercado e da mídia que depende das aplicações financeiras para se manterem, ninguém faz nada para conter o consumo de produtos. Como alternativa inventam o eco-dólar para continuarem ganhando sobre a destruição que eles mesmos produziram. Investem na redução de danos, criando marketing ecológico e vendendo novos modelos de marcas embalados em roupagens politicamente correta. Dizem que o guru da Nova Era é o ex vice-presidente dos E.U.A. que quer salvar o mundo do Efeito Estufa – nosso mais recente vilão. E que vai fazer shows com artistas de vários países, pela salvação do planeta: "Você investe em nosso banco e quem ganha é a natureza!". Melhor fazer poesia: "silêncio/ economia de palavras/ também é ecologia"

Arte: decorativa ou combativa?
A arte é sempre vista como a cereja que decora o sorvete que os outros tomam. Pelo menos assim é que a maioria das pessoas pensam ou a vêem. Como algo decorativo, fantasioso. Alegórico, mais precisamente. Ou seja, ela é admirada até o ponto em que não toca as questões que a vida propõe. E, ao permitir que ela seja rotulada como inocente diante da radical transformação que a sociedade está passando e continuará a passar ainda, por certo período histórico, deixamos cristalizar essa impressão de impotência, como se isso ajudasse a salvar nossa própria pele. E não é questão de denúncia ou citação, que é o que de mais alegórico pode haver, mas de interferir na própria carne da vida, muitas vezes sendo obrigado a tomar medidas drásticas para continuarmos vivos.

Se, por um lado, a luta de massas parece não conter mais aquele grau de viabilidade que um dia parecia conter, por outro lado, uma política que leve em consideração a "microfísica do poder", para poder se expandir, deve ter em mente uma mínima organização entre suas partes. Ainda que seja entre duas pessoas. E os artistas – e a arte, em geral – são os mais aptos a enfrentarem essa situação, uma vez que o anarquismo de suas proposições os levam a desenvolver o sentimento e a subjetividade como suas mais potentes armas.

Entre o posicionamento político, a reflexão filosófica e a ação prática artística, o planeta derrete de quente e aumenta a energia gasta para suportar o calor, cada vez maior. Uma vez que o uso das tecnologias não garante a sobrevivência do ser humano no planeta, o ideal seria repensar nossas necessidades diante do caos que insiste em nos apavorar. Ou alguém acredita que as enormes despesas gastas com o estudo genético, a criação de célula-tronco para reproduzir neurônios, ou o último modelo de celular - feito de algum material ecologicamente correto – servirá para acabar com a fome e a miséria da população inteira do planeta? Quando se fala em inclusão digital, será que conseguiremos construir 2 ou 3 bilhões de computadores para distribuir pelo mundo? Será que temos tantas reservas de matéria-prima assim, ainda, nos chamados países emergentes? E quem é que vai ganhar com isso?

Alguns artistas investem no efeito que o uso de novos programas em computador são capazes de oferecer, simplesmente pelo direito que têm em experimentar as novas ferramentas disponíveis no mercado. Ninguém tem o direito de condenar esse uso. Mas se sua arte não é capaz de ir além do mero jogo de formas e efeitos pirotécnicos. Se ela não é embasada por uma idéia capaz de provocar o espectador para além da sedução e da hipnose que o uso da máquina pode proporcionar, então sua arte está condenada ao mesmo paradoxo do ar-condicionado que aquela senhora que reclamava do calor, me fez pensar.