terça-feira, agosto 29, 2006

Sincretismo, mimetismo e identidade cultural



NBP, trabalho de Ricardo Basbaum, em que as pinturas na parede possuem cheiro.










Em um texto sobre o trabalho do artista carioca Ricardo Basbaum, na revista Item5, Maria Moreira toca em duas questões fundamentais da formação da cultura brasileira, que hegemonicamente é judaico-cristã, mas formada também pela(s) cultura(s) africana(s) e indígena, interligadas por uma ponte que relaciona as culturas através do mimetismo e do sincretismo, em suas formas de preservação de identidades e resistência às opressões operadas de uma cultura sobre outras. Assim, quando o inimigo está demasiado próximo, é preciso se camuflar, como o camaleão, no ambiente no qual se está inserido, confundindo-o. Quando o inimigo impõe seus elementos simbólicos, culturais, é preciso saber incorporá-los, resistindo, assim, à interpretação que o opressor faz desses símbolos.
A esse respeito a autora do texto “Repersonalização, enfrentamento e reversibilidade” cita Roger Bastide, que coloca que a fusão entre Iemanjá e Nossa Senhora “não leva à conversão, à eliminação ou à assimilação de um item sobre outro”. Mas que cada um vê nas imagens seus próprios esquemas de percepção e explicação da realidade, sem que se dê, na verdade, a acomodação do signo em um só contexto. Um jogo de analogias e não de fusão. E que o mimetismo “é uma estratégia de combate”: “o ruído futuro de um segredo explosivo”.
E isso significa que, historicamente, desde quando foram trazidos os primeiros escravos negros, que são as estratégias de dissimulação e aparente ausência os modos pelos quais a cultura do país passa a ser equacionada. E, aí sim, estamos falando no Estado Brasileiro e suas formas de manutenção e uso do poder segundo uma negatividade de ação.
E a negatividade da ação, nesse caso, não supõe uma ação negativa, mas de retirada. E, ao retirar-se, muitas vezes, aquela falta torna algo ainda mais presente do que sua presença, de sua participação. Por exemplo, quando colocamos a culpa no governo por isso ou por aquilo, atestamos ao governo uma situação de poder. Damos valor a ele.
Tais formas de hibridismo que se colocam podem confundir o observador incauto, que vê a forma, mas não conhece o conteúdo daquilo que está sendo dito. Até porque pode ser que o que está sendo dito não é da ordem da palavra, mas do olfato, do gosto, ou da imagem (visão), por exemplo. Ou que a uma coisa corresponda outra, ou a negue.
Aceitar, simplesmente, a mestiçagem como algo positivo, copiando, sem refletir, os modos de ser do outro é descaracterizar, ou assumir que não se possui cultura própria. Mas isso também é parte de uma cultura, ou de uma imposição cultural, uma vez que a desagregação se revela como fonte do individualismo, do discurso securitário e do messianismo. Ela reforça uma cultura de consumo.
Já dizia um sábio jornalista que “não existe criação sem tradição que a nutra, assim como não existe tradição sem criação que o renove”. No sentido icônico, que nos remete novamente à esfera da criação artística e ao texto inicialmente citado sobre o artista Basbaum, a autora pensa no termo lateralidade, distinguindo-o da antropofagia, do tropicalismo ou do hibridismo, que se tornaram uma fórmula fixa para se pensar uma cultura em trânsito. Prega, então, no caso dos símbolos, o não apego às suas formas, mas o deslizar constante de seus significados, com ênfase na ação do sujeito que circula entre os objetos e não entre os objetos nos quais ele circula. Pois em sociedade transculturais como a nossa, as articulações, paras serem mantidas, necessitam sempre estar ligadas às suas raízes, mas também, de olho no jogo em que se operam as questões contemporâneas de informação, mídias e sistemas tecnológicos.

sábado, agosto 26, 2006

CARECA DE SABER




Com a faca no pescoço

Barbeiro/fotógrafo/priapista mostrando a Força Jovem...

CARECA DE SABER























PERFORMANCE REALIZADA EM ANTONINA, Paraná,durante o 16º FESTIVAL DE INVERNO promovido pela Universidade Federal do Paraná, dentro do projeto REDES / FUNARTE e produzido por EPA! (Expansão Pública do Artista), capitaneada pelo artista Newton Goto.

Performer: Rubens Pileggi Sá
Título do trabalho: “Careca de saber”
Data: Julho de 2006
Registro: Newton Goto

CONTEXTO:
Discutir questões relacionadas à ética e à estética, em uma barbearia, a partir do quadro eleitoral nacional e a polarização, pela mídia (até o momento em relação às pesquisas) entre dois candidatos à presidência da República e suas propostas (ou falta delas) para governar o país.

AÇÃO E REFLEXÃO
“Careca de saber”: relativo à sabedoria e à perda de cabelo enquanto fenômeno físico por ação do tempo (calvície) ou corte de cabelo. Experiente.

A PERFORMANCE
Realizada em uma barbearia local, no centro da cidade, onde os homens se reúnem para falar mal da vida alheia, política e futebol (não necessariamente nesta ordem). Ou, a barbearia é o rádio-peão da cidade interiorana.
Com duas placas à mão, uma escrita LULISMO e a outra ALQUIMISMO, o performer mandou cortar seu cabelo e barba, mudando assim seu visual radicalmente.
A questão colocada era a mudança que se gostaria de fazer, saindo de uma situação política ligada ao Lulismo – em referência ao presidente Lula – para se chegar ao Alquimismo. Mas não ao Alckimismo do candidato do PSDB à presidência, mas daquele referente à Alquimia, na idade média, que tinha por busca a pedra filosofal, de transformar o chumbo em ouro (não pelo vil metal em si, mas pelo que ele representa, seu referencial simbólico, enfim!)

A partir de uma consideração genérica, de que os militantes de esquerda são barbudos e cabeludos (desde descuidados até almofadinhas) e os integrantes da direita política partidária são carecas e barbeados (repare!), o artista começou uma conversa na barbearia envolvendo várias pessoas do lugar, para falar sobre arte e política. Questionando, ao mesmo tempo, a ética e a estética enquanto conduta de ação individual e coletiva. E colocando temas como reforma agrária, legalização das drogas e reestatização dos setores estratégicos para que as pessoas refletissem e opinassem sobre essas questões.

Ao final do trabalho, o barbeiro também quis participar da performance além de seu trabalho cotidiano, tirando uma foto com a máquina dele, que, ao invés de foto, saia um pênis quando apertado o clique. O que tornou ainda mais jocosa a cena toda, porque falávamos de esquerda e direita. E toda agremiação populista possui sempre uma ala denominada de “força jovem” ou “juventude socialista” ou “juventude fascista”, que são jovens com idéias velhas, que sustentam o poder do phalo grande e duro como símbolo da sociedade machista e patriarcal.
Como uma boa performance de barbearia, restava-nos apenas rir. E foi o que fizemos. Afinal de contas, uma das estratégias para se começar um assunto sério é a descontração no início da conversa e o aprofundamento do debate, em seguida.
CARECA DE SABER, então, tem a ver com essa situação de jogos polares políticos e a transcendência dessa situação – a alquimia – através da sabedoria.


Antonina Pr. – julho 2006

ampliação dos temas de debate

A partir de agora não serão mais apenas os textos escritos para a coluna do jornal Folha de Londrina que postarei aqui. Usarei esse espaço para falar e mostrar trabalhos meus e de outros artistas, também.

Gostaria de convidar a todos para outros dois blogs, de minha autoria:

http://bocarra.blogspot.com

http://poesiatododia.zip.net

no primeiro o assunto é o debate político e social, denunciando a farsa ideológica, muitas vezes travestida com o nome de democracia.

no segundo, são as poesias que eu cri0.

Ou seja, aqui ficará um espaço mais aberto, alternativo e genérico. Enquanto nesses outros dois blogs, o assunto é bem focado.

É isso.

quinta-feira, agosto 24, 2006

AGOSTO MORTAL

Agosto mortal


Um personagem romântico pensando na morte:
É um dia frio de agosto, o céu está azul. No rádio toca Raul Seixas, morto em 21 de agosto de 1989, cantando “Canto para minha morte”: “Vou te encontrar vestida de cetim/ pois em qualquer lugar esperas só por mim/ e no teu beijo provar o gosto estranho/ que quero e não desejo, mas tenho que encontrar...” Volta-se à biblioteca e lê, do poeta russo Vladimir Maiakovski (1893-1930) – em tradução do poeta Haroldo de Campos (1929-2003) – a homenagem a Serguéi Iessiênin, seu amigo, também poeta, que se suicidara: “morrer não é difícil / difícil e a vida e seu ofício”.

É agosto. Carlos Drummond de Andrade morreu em agosto. Getúlio Vargas suicidou-se em agosto. Trotski foi assassinado em agosto. Marilyn Monroe. Princesa Diana. E até Elvis – que, dizem, não morreu – morreu em agosto. Muita gente morre em outros meses, mas morrer em agosto tem outro sabor. É o mês da terrível noite de São Bartolomeu, quando foram massacrados mais de 70 mil protestantes na França, em 1572. É um mês feito para se morrer. Pensa em morrer em agosto, também. Pensa que seu pensamento está muito enciclopédico, hoje. Mas nem por isso deixa de pensar na morte: “antes é que se morria”, já sabia o poeta Leminski, morto em 1989.

Filosofia e morte:
As dores, as pestes, as doenças, nos forçam a lutar pela vida. São paradoxos da existência. Dizem: aqui sangra! Mas a morte não ocupa lugar algum. Não fornece pistas. Não emite sinais. Somos impotentes para questioná-la, pois ela não nos dá possibilidades de retorno, chances de acaso, nem consolo de probabilidades. Ela é definitiva. Morrer para ganhar vida eterna. Morrer para ficar para história. Morrer para ficar na memória. Morrer para ser esquecido. Morrer para esquecer. Morrer não é nenhuma glória. Principalmente enquanto se está vivo e se sente morto. Ou se é um morto-vivo, que perdeu a coragem de enfrentar a vida. “A morte não nos concerne”, dizia Epicuro, “quando somos ela não é, e quando ela é, não somos mais”.

“Os mortos governam os vivos”. Essa frase de Oswald de Andrade (1890-1954), de repente, toca o x da questão. E faz lembrar da louca Jardelina da Silva, morta em agosto (também) de 2004, que era “mão de morto”, como ela dizia. Ou seja, tudo o que fazia era comandado – segundo ela – pelos espíritos dos mortos.
Talvez, seja esse sentido de apropriação “espiritual” o que de mais importante podemos considerar na morte: como sendo parte de um ciclo; ponte para passagem de um mundo a outro; movimento necessário à continuidade da existência. “O momento mais escuro da noite anuncia o início da claridade da manhã seguinte”. E a arte a imortalizar esse momento.

A arte eterniza a vida:
O artista Flávio de Carvalho (1889-1973) desenhou sua mãe no momento em que ela morria, captando os últimos suspiros dela nesse planeta, em uma série que se tornou célebre na arte nacional. São desenhos muito rápidos, croquis, mas que emanam essa urgência de registrar a vida em seus estertores. E os retratos de sua mãe entraram para a posteridade...
Sobre a morte, também, há um trabalho extremamente inteligente e delicado feito pela artista Yoko Ono – viúva de John Lennon (1940-1980) – intitulado “Árvores do desejo”, de 1998, realizado no Brasil, em homenagem aos camponeses mortos no dia 09 de agosto (olha aí!) de 1995, no massacre de Corumbiara. Trata-se de vários caixões de defunto cheios de terra, em que se plantou mudas de árvores perfumadas, evidenciando uma metáfora entre morte e renovação.

Esquecendo da vida:
Nosso personagem, então, deixa de lado a biblioteca, passa ao largo do livro “Os sofrimentos do jovem Werther”, do poeta alemão J. Goethe (1749-1832), que se suicida por um amor não correspondido, e aumenta o som do rádio que, neste momento, toca “Fita Amarela”, de Noel Rosa(1910-1937): “Se existisse alma/ se há outra encarnação/ eu queria que uma mulata/ Sapateasse no meu caixão”. Abre a janela, deixa o sol entrar e esquece da vida (e também da morte).

agosto mortal




















O Dia da Morte; pintura de William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)