Criptogramas de Hilário Mertz
Esse Hilário Mertz não existe! Desde que eu o conheço, estuda
com afinco as várias teorias de signos, pesquisando profundamente
Saussure, Peirce, Jacobson e Fenollosa. Do começo ao fim. Sempre
intrigado com a relação entre texto e imagem, realidade e ficção,
diz que ambas são invenções culturais e assim devem ser tratadas.
Teoria e prática, palavra e ação para ele são as mesmas coisas.
Esses dias recebi uma cartinha criptografada dele (foto). Como não
entendi absolutamente nada do que estava escrito, quero dizer,
desenhado, resolvi escrever de volta, com todas as letras,
perguntando o que significava aquilo. Mertz me responde, então, como
é que eu, professor de arte – arte contemporânea, ele frisa –
não percebia o que significava sua correspondência. “Logo você”,
ele acusou, “tão consciente das experimentações dos anos 60 e da
arte conceitual”. E continuou: “fã de Kosuth e do Art &
language”. Me senti um ignorante! “Em primeiro lugar,” dizia
ele, “você mordeu a isca da armadilha”. “Sim, porque ao
responder, você continuou um sistema de troca de mensagens que é
próprio da comunicação, ainda que na folha de papel enviada
somente houvesse símbolos”, explicou-me na sequência. “A
diferença entre signo e símbolo é mínima, mas foi a partir daí
que começamos a inventar nossos caracteres atuais (ocidentais). As
letras a, b, c, etc.”. Quanta cultura!!!! “Mas o que quer dizer
aqueles desenhos, quero dizer, escrita, Hilário?” Perguntei,
humildemente. E ele disse ter ido mais longe do que o Paulo Leminski,
naquele livro O Catatau, em relação ao monstro intersemiótico
OCCAM. Fui, então, obrigado a pesquisar sobre o que era o tal
'monstro' e descobri que, no épico do poeta paranaense, as palavras
perdem o sentido e até as letras entram em parafuso à medida que se
aproximam da palavra OCCAM, que tem um significado muito particular
dentro do texto.
Para quem não conhece a história do livro, Leminski coloca o
filósofo René Descartes na nau de Maurício de Nassau, em nome da
corte holandesa, mas Cartesius cai de boca na Diamba dos
negros do navio em que viaja. E o pai do racionalismo pira e vê o
mundo com outros olhos. Quando chega ao Brasil, então, é aquela
loucura. Os tempos se fundem e se confundem, as ideias se liquefazem,
o calor altera a percepção do filósofo e o nexo e a lógica
interna do texto explodem. “Nosso romance experimental”, diz
Mertz, fazendo apologia do Brasil e de seu conterrâneo paranaense.
Dar um passo além de Leminski, no entanto, para Hilário Mertz, é
transformar os próprios tipos das letras, sua cor, textura, etc. em
coisa. Quer dizer, a palavra não fala de outra coisa. Ela é por si
só. Uma imagem que não precisa de explicação para ser. “A arte
moderna ensinou”, diz o sábio Mertz, “que uma mancha de tinta
não precisa representar nada. Ela é uma mancha de tinta e pronto.
Ela vale pelo o que ela é”, pontua. “Kandinski, Klee, Mondrian
não estavam querendo representar nada, imitar coisa alguma, como
faziam os pintores antes do modernismo. Mas mostrar que aquilo que
faziam era tanto matéria quanto ideia”. Confesso que preciso
estudar mais sobre esses assuntos, mas consegui capturar um pouco
daquilo que ele me falava. “O problema”, comentei com ele, “é
que além de desenhos, tais desenhos são coloridos”. “Como
compreender tal escritura? Melhor, como decifrar tais imagens?”. E
ele me respondeu em sua última e derradeira resposta: “você não
viu nada”. Isso me intrigou ainda mais. Que sujeito complicado!!!!
Decidi olhar pela última vez a carta-enigma enviada por Hilário
Mertz, para acabar de vez com tamanho suspense. Ou eu entendia o que
aquilo queria dizer, de uma vez por todas, ou esquecia daquilo e ia
assistir ao Big Brother, postar no facebook ou fazer qualquer outra
coisa de inútil. Então, para surpresa geral, não havia mais nada
pintado, desenhado ou escrito naquele papel que ele havia
anteriormente enviado. Estava branco e vazio. Possivelmente ele deve
ter usado uma tinta capaz de desaparecer do papel depois de algum
tempo exposta à luz. Só pode ser. Ele é filósofo transcendente e
acredita no além, mas eu sou um pobre ateu que desacredito até do
descrédito. O que pensar, então? Que aquilo era uma revelação?
Ainda me lembro que as imagens começavam, do alto, com um desenho
que parecia um peixe, havia um sinal de soma e, após este sinal, uma
circunferência. Disso resultava um olho que poderia resultar em uma
frase, ou significar algo, mas eu não sou criptógrafo, apenas um
curioso. O fato da imagem ter se apagado, me trouxe intranquilidade.
Me sinto preso na armadilha conceitual de Hilário Mertz e sem
condição de me desvencilhar dela. O branco da página tornou-se a
água de um aquário. E eu nunca mais poderei me libertar desta
condição, uma vez que as pistas que levavam de volta às imagens do
mundo foram apagadas. E meu olho, como um peixe de aquário, move-se
pra lá e pra cá, sem poder mais sair do lugar.