Cidade dormitório
Visão parcial do trabalho de Guga Ferraz, em exposição nas paredes externas da Galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro.
Já conhecia algumas coisas que ele tinha feito, como o adesivo para grudar em placas de sinalização nas paradas de ônibus. Sobre o desenho do ônibus, nas placas, era adicionado um outro desenho, de fogo, deixando o ônibus em chamas. Isso bem na época em que começaram a incendiar os ônibus no Rio de Janeiro.
Outro, tão ácido quanto, só que mais irônico: o desenho do Bush impresso sobre panos de chão. Coisa bem popular. Para quem não gosta do presidente dos EUA – cerca de 80% da população do planeta – este é um adereço indispensável para se ter em casa!
Mais um, só para ilustrar o texto. Simulando o desenho de indicação da saída de emergência colado nos vidros de ônibus, ele fez outro em que, no lugar da mão que empurra o vidro, há uma mão segurando uma arma. E, depois, escrito em baixo: "em caso de assalto, não reaja!".
Sabia da sua ligação com o Zona Franca, uma ação coletiva de chamar artistas para mostrar trabalhos experimentais, na Fundição Progresso. E, também, que ele é um dos editores da revista de arte O Ralador. Além de participante da ação de colar cartazes lambe-lambe, do coletivo de arte Atrocidades Maravilhosas.
Por aí já dá para sentir seu engajamento artístico e sua postura de enfrentamento com a realidade. E, até uma das características de seu trabalho, a repetição serial. Seja como impressão, gravura, ou como células que se desenvolvem, se multiplicam. Por exemplo, uma de suas proposições, intitulada "Coluna", em que várias pessoas – uma sobre o ombro da outra – faziam as vezes de sustentação de edifício, pode ser considerado um desses casos.
Repetição. Uma das portas para entender seu trabalho. Pois é disso que o artista tirou partido para criar seu "Cidade Dormitório", na parede da Galeria Gentil Carioca, na região central do Rio de Janeiro. Lá, em plena integração com a arquitetura do local – exteriormente suja e abandonada – a Praça Tiradentes, hotéis de baixa reputação e o Centro Cultural Hélio Oiticica, Guga crivou um "beliche" de 08 (!) andares.
Oferecendo um equipamento urbano a quem quiser passar algum momento – ou fazer qualquer outro tipo de ocupação – descansando em um dos "cômodos" dessa estrutura de ferro, com grades de madeira e chumbada à parede. E com colchonetes em todos os andares. Algo que lembra o minimalismo – pela pureza e repetição formal – mas zomba da história da arte.
Tal instalação de rua leva a pensar, primeiramente, na questão do déficit habitacional que impera no país, em geral, e, no Rio de Janeiro, em particular. E poderíamos ser induzidos a crer que o trabalho é um protesto do artista contra o estado de indigência que grassa pelo centro da cidade. Pode ser. Qualquer mendigo que quiser se apossar de um dos "quartinhos" pode fazê-lo, pelos próximos quatro meses, que é o prazo para a obra permanecer no local. Pelo menos é essa a intenção: de uso, de ocupação.
Sugere, também, tratar-se de uma mimese de um conjunto habitacional popular qualquer, como esses "ninhos de pombos" que se constroem, cada vez mais, para pessoas que podem pagar cada vez menos. E, já que a questão é tratada pelo viés da arte, aquilo pode ser um prédio qualquer, ou, mesmo, um brinquedo lúdico. Ou mesmo como uma proposta de nomadismo como estilo de vida. Um dia dormir aqui, outro dia lá, e assim por diante.
(Passando por ali, uma noite, dois dias depois da inauguração da exposição, as crianças do bairro e a polícia que vigia o local queriam saber o que era aquilo. E acabaram achando divertida a idéia daquele objeto. Logo as crianças fizeram dali seu brinquedo. E os guardas foram embora.)
O fato é que não há nesse e nem nos outros trabalhos de Guga Ferraz algo tão filantrópico ou lúdico, propriamente, como há nos trabalhos do artista polonês Wodiczko, que faz equipamentos urbanos para indigentes. Ou, no trabalho de Vito Acconci, um artista dos Estados Unidos, que fez um equipamento urbano, dentro do evento Arte Cidade, em São Paulo, colocando sanitários, banheiros e oferecendo um local para os homeless descansarem. A crítica de Guga é mais ácida. É mais irônica. E a ambigüidade entre o funcional e o estético, equipamento urbano e sarcasmo, no mínimo faz qualquer pessoa pensar a respeito daquilo de forma desconfiada. Não perguntamos se o que vemos é arte. Perguntamos sobre aquilo que vemos.
Finalmente, há que se pensar nos riscos desse tipo de trabalho, de embate com a realidade, que não possui a possibilidade de recuo, uma vez colocado em circulação, nem de ser refeito, como uma pintura ou uma escultura. Menos, ainda, de ser escondido no porão de casa, caso não tenha ficado ao gosto do artista. Esse enfrentamento com o suporte “vida” é que o torna instigante, desafiador, pois, ao levar em consideração o contexto onde a obra é exposta, permite uma aproximação com as pessoas, dentro de questões que lhe são pertinentes, e não como arte cujos códigos nem sempre podem ser acessados por um público não especializado. Esse, de fato, o desígnio.
(mais imagens de Guga Ferraz em: http://www.agentilcarioca.com.br/indexpor.html)
Outro, tão ácido quanto, só que mais irônico: o desenho do Bush impresso sobre panos de chão. Coisa bem popular. Para quem não gosta do presidente dos EUA – cerca de 80% da população do planeta – este é um adereço indispensável para se ter em casa!
Mais um, só para ilustrar o texto. Simulando o desenho de indicação da saída de emergência colado nos vidros de ônibus, ele fez outro em que, no lugar da mão que empurra o vidro, há uma mão segurando uma arma. E, depois, escrito em baixo: "em caso de assalto, não reaja!".
Sabia da sua ligação com o Zona Franca, uma ação coletiva de chamar artistas para mostrar trabalhos experimentais, na Fundição Progresso. E, também, que ele é um dos editores da revista de arte O Ralador. Além de participante da ação de colar cartazes lambe-lambe, do coletivo de arte Atrocidades Maravilhosas.
Por aí já dá para sentir seu engajamento artístico e sua postura de enfrentamento com a realidade. E, até uma das características de seu trabalho, a repetição serial. Seja como impressão, gravura, ou como células que se desenvolvem, se multiplicam. Por exemplo, uma de suas proposições, intitulada "Coluna", em que várias pessoas – uma sobre o ombro da outra – faziam as vezes de sustentação de edifício, pode ser considerado um desses casos.
Repetição. Uma das portas para entender seu trabalho. Pois é disso que o artista tirou partido para criar seu "Cidade Dormitório", na parede da Galeria Gentil Carioca, na região central do Rio de Janeiro. Lá, em plena integração com a arquitetura do local – exteriormente suja e abandonada – a Praça Tiradentes, hotéis de baixa reputação e o Centro Cultural Hélio Oiticica, Guga crivou um "beliche" de 08 (!) andares.
Oferecendo um equipamento urbano a quem quiser passar algum momento – ou fazer qualquer outro tipo de ocupação – descansando em um dos "cômodos" dessa estrutura de ferro, com grades de madeira e chumbada à parede. E com colchonetes em todos os andares. Algo que lembra o minimalismo – pela pureza e repetição formal – mas zomba da história da arte.
Tal instalação de rua leva a pensar, primeiramente, na questão do déficit habitacional que impera no país, em geral, e, no Rio de Janeiro, em particular. E poderíamos ser induzidos a crer que o trabalho é um protesto do artista contra o estado de indigência que grassa pelo centro da cidade. Pode ser. Qualquer mendigo que quiser se apossar de um dos "quartinhos" pode fazê-lo, pelos próximos quatro meses, que é o prazo para a obra permanecer no local. Pelo menos é essa a intenção: de uso, de ocupação.
Sugere, também, tratar-se de uma mimese de um conjunto habitacional popular qualquer, como esses "ninhos de pombos" que se constroem, cada vez mais, para pessoas que podem pagar cada vez menos. E, já que a questão é tratada pelo viés da arte, aquilo pode ser um prédio qualquer, ou, mesmo, um brinquedo lúdico. Ou mesmo como uma proposta de nomadismo como estilo de vida. Um dia dormir aqui, outro dia lá, e assim por diante.
(Passando por ali, uma noite, dois dias depois da inauguração da exposição, as crianças do bairro e a polícia que vigia o local queriam saber o que era aquilo. E acabaram achando divertida a idéia daquele objeto. Logo as crianças fizeram dali seu brinquedo. E os guardas foram embora.)
O fato é que não há nesse e nem nos outros trabalhos de Guga Ferraz algo tão filantrópico ou lúdico, propriamente, como há nos trabalhos do artista polonês Wodiczko, que faz equipamentos urbanos para indigentes. Ou, no trabalho de Vito Acconci, um artista dos Estados Unidos, que fez um equipamento urbano, dentro do evento Arte Cidade, em São Paulo, colocando sanitários, banheiros e oferecendo um local para os homeless descansarem. A crítica de Guga é mais ácida. É mais irônica. E a ambigüidade entre o funcional e o estético, equipamento urbano e sarcasmo, no mínimo faz qualquer pessoa pensar a respeito daquilo de forma desconfiada. Não perguntamos se o que vemos é arte. Perguntamos sobre aquilo que vemos.
Finalmente, há que se pensar nos riscos desse tipo de trabalho, de embate com a realidade, que não possui a possibilidade de recuo, uma vez colocado em circulação, nem de ser refeito, como uma pintura ou uma escultura. Menos, ainda, de ser escondido no porão de casa, caso não tenha ficado ao gosto do artista. Esse enfrentamento com o suporte “vida” é que o torna instigante, desafiador, pois, ao levar em consideração o contexto onde a obra é exposta, permite uma aproximação com as pessoas, dentro de questões que lhe são pertinentes, e não como arte cujos códigos nem sempre podem ser acessados por um público não especializado. Esse, de fato, o desígnio.
(mais imagens de Guga Ferraz em: http://www.agentilcarioca.com.br/indexpor.html)
(+ textos em http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/)