terça-feira, junho 06, 2006

666


Painel central de “O jardim das delícias terrenas” (1505-1510). Pintura de Hieronymous Bosch











“lúcifer, senhor dos caminhos! iluminai nossas veredas. desencadeai a ígnea tempestade para que o mais humano entre os deuses, o mais santo entre os mortais, possa de novo caminhar à luz do dia, com seu chifre, cetro e rabo. lúcifer! lúcifer! imperai!
Lúcifer, do livro Letra Elétrika (1994), do poeta Chacal

Diz-se por aí que 666 é o número da Besta. Lembro-me de um filme que raspavam a cabeça de uma criança e o número estava escondido lá, o mesmo número de que fala a Revelação do livro Apocalipse, da Bíblia: a marca do anticristo, do demônio, do Mal em si.
Ontem foi o dia 06 de junho de 2006, ou 6/6/6, para simplificar. 666. E se o apocalipse ainda não começou depois desse dia, quem sabe vale pensar um pouco sobre a significação do Diabo com a história e sua influência na arte, quando o próprio rock é convertido em manifestação de oração em igrejas evangélicas. Como se a gente não soubesse que “o Diabo é o pai do rock”.

Dias desse ouvi de um pai-de-santo da cidade, que ele se sente injustiçado com o capeta, porque esse é “tão macho” lá na sua tenda, exigindo sacrifícios disso e daquilo e quando ele é incorporado em uma igreja evangélica vira – como disse ele – “uma franga”, sendo rechaçado por qualquer pastorzinho que aparece pela frente.
Será que o diabo foi domesticado? Fidel Castro, em uma entrevista para uma revista de esquerda, dos Estados Unidos, a Select, disse “que quando lhe dão o título de diabo, você, então, se torna muito mais poderoso do que é de verdade, porque se torna indestrutível”. “Todos te respeitam”, completa o homem forte de Cuba.

O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, em seu livro “A história do diabo” faz uma colocação sobre o diabo bastante pertinente, quando diz que “o diabo é o princípio conservador da matéria”, enquanto o criador está ligado à intemporalidade e à dissolução do ser, para salvá-lo. Ou seja, o diabo seria o princípio palpável, material, concreto, enquanto Deus, ou o princípio divino estaria ligado à pureza e à unidade no Ser. E destaca que o diabo tem um dever, que é o de manter a “temporalidade”.

A invenção do diabo, a loucura e a criação artística possuem em comum o fato de desconfiarem da razão e da lucidez, e sempre questionarem a noção de Deus à respeito do que é ou não é a verdade. Antonin Artaud, um homem do teatro da primeira metade do século passado, em um texto intitulado “Vida e morte de Satã, o fogo”, escreveu que a Renascença ao invés de ser uma evolução da humanidade, era uma diminuição, porque tentou domesticar a loucura e compartimentalizá-la dentro da razão, dizendo que “a realidade tinha suas leis, sobre-humanas talvez, mas naturais”. Reivindicava que o ser humano tinha perdido a visceralidade em seus atos. E Artaud queria transformar sua arte na própria vida.

Como disse uma vez a “louca” Jardelina da Silva, “o diabo não é má pessoa. Ele só é besteirento”. Ou um artista perigoso que se faz de criminoso, criando suas próprias leis para poder infringi-las, como nos revela Gustavo Bernardo, no texto “O diabo irônico”.
O fato é que depois que o Dr. Freud liberou o inconsciente do claustro das esferas demoníacas, falar do diabo e fazer “coisas do Diabo” passou a ser uma das possibilidades de se pensar a neurose e a loucura em nosso tempo. Não mais com a repressão dos instintos que habitavam a imaginação da época dos que pintaram a loucura como possessão do demônio – tais como Hieronymous Bosch (1450 - 1516) e Pieter Brueghel (1525 - 1569) – mas como forma de pensá-la em nossa realidade, dentro de cada um de nós. Como pregava o movimento Surrealista, do qual Artaud fez parte.