terça-feira, dezembro 13, 2005









Intervenção sobre foto (2002-2005)



Para fazer a dança da chuva

Quem não se lembra em filme de mocinho e bandido, que o índio era sempre amigo do vilão da história? Cena clássica de faroeste: um índio com penacho e roupa de franja, manga comprida, com rifle na mão, despencando de uma fachada de madeira, à frente da câmera. E dança da chuva, então? Dizem que faziam chover? Hoje, ninguém mais acredita. Nem eles, indígenas. Mas, loucura ou não, pensar nisto pode levar a conclusões não tão absurdas para os dias absurdos que hoje vivemos. Porque o equilíbrio ambiental é tão frágil que uma simples movimentação e vibração a mais nos átomos em nosso entorno podem mudar a configuração de toda a camada cósmica. Com a industrialização, com o desprezo pela natureza, a indiferença em face à fome dos miseráveis, com a crescente poluição, corrupção, etc. isso parece improvável e até ridículo de ser pensado.

Parece coisa de maluco, mas pensar em “dança da chuva” – aquela brincadeirinha que fazíamos quando criança, girando em torno do fogo, com as mãos na boca fazendo uh, uh, uh – em tempos de ALCA, Nafta, guerra imperialista, etc. é, também, questionar toda a colonização, produtos enlatados e a lavagem cerebral imposta como “cultura”, para reafirmar, mais uma vez que, enquanto houver resistência haverá quem ouse fazer a Dança da Chuva. I´m singing and dancing for the rain!
A chuva e a dança lembram outro personagem, o xamã - aquele que transita entre o mundo dos mortos trazendo mensagens aos vivos – que é o feiticeiro, o pajé, o curandeiro, o “padre”, o “médico” da tribo. Com a intervenção da cultura do branco sobre a cultura do índio, esse equilíbrio instável também não resistiu. E mesmo os índios já preferem tomar um remédio para aliviar dor no estômago do que confiar na sabedoria do pajé. Enquanto isso, nos laboratórios multinacionais, os segredos das ervas e plantas são clonados e patenteados sem que seus verdadeiros descobridores tenham qualquer possibilidade de acesso aos dividendos dessas “pesquisas”.

Voltando, o que é uma mentira? Para que ela serve? Serve para enganar os outros. Para levar vantagem sobre alguém. Para obter lucros e dividendos. Antes não havia mentira entre os índios porque não havia interesses comerciais entre eles. Ninguém precisava levar vantagem sobre ninguém porque não havia o conceito de propriedade. Lendas ancestrais não são mentiras, fazem parte do mito. É outra coisa. Então, quando um xamã promovia a dança da chuva, um ritual de cura, um pedido de ajuda aos deuses para encontrar alimentos, por exemplo, aquilo era uma verdade para toda a tribo, para toda a comunidade. Não existia a desconfiança, a mentira não fazia sentido. Mas à medida que os povos indígenas foram entrando em contato com os brancos e sendo enganados, e suas terras tomadas, então uma enorme dúvida se instalou no meio deles. E o que era pureza se transformou em ingenuidade e ingenuidade em um mal a ser evitado. É engraçado, nas tribos, ser um “padre” é sinal de poder e qualquer um pode sê-lo, desde que conte uma história mirabolante de como lhe aconteceu de se tornar um “vidente”. Com sua fértil imaginação e com a possibilidade de se tornar importante, rapidamente os mais espertos se colocam à disposição para curar outros membros da tribo. E até para brancos eles fazem rezas. Ganham sempre um presente por isso.
A arte de enganar (e de se enganar) é o motor que move o que comumente chamamos de arte. Não há um índio na foto, há uma representação. Não é uma pessoa: é papel e tinta. Não é um rosto: é uma máscara. No entanto, ela nos desperta a imaginação. Mexe com a nossa curiosidade. Toca nosso sentimento. Já disse Pessoa que “o poeta é um fingidor”.
E o vilão do cinema “hollywoodiano”, aquele índio “de araque”, já nem existe mais. Hoje ele se veste de John Wayne, no feriado do “dia dos índios” e se entrega à festa do “peão boiadeiro”, debaixo de muito funk. Mas em algum lugar, pode ter certeza, alguém deve estar plantado dúvidas no solo onde a certeza absoluta é a verdade imposta. Chova ou faça sol.

pileggisa@hotmail.com