sábado, janeiro 26, 2013

Criptogramas de Hilário Mertz



 Esse Hilário Mertz não existe! Desde que eu o conheço, estuda com afinco as várias teorias de signos, pesquisando profundamente Saussure, Peirce, Jacobson e Fenollosa. Do começo ao fim. Sempre intrigado com a relação entre texto e imagem, realidade e ficção, diz que ambas são invenções culturais e assim devem ser tratadas. Teoria e prática, palavra e ação para ele são as mesmas coisas. Esses dias recebi uma cartinha criptografada dele (foto). Como não entendi absolutamente nada do que estava escrito, quero dizer, desenhado, resolvi escrever de volta, com todas as letras, perguntando o que significava aquilo. Mertz me responde, então, como é que eu, professor de arte – arte contemporânea, ele frisa – não percebia o que significava sua correspondência. “Logo você”, ele acusou, “tão consciente das experimentações dos anos 60 e da arte conceitual”. E continuou: “fã de Kosuth e do Art & language”. Me senti um ignorante! “Em primeiro lugar,” dizia ele, “você mordeu a isca da armadilha”. “Sim, porque ao responder, você continuou um sistema de troca de mensagens que é próprio da comunicação, ainda que na folha de papel enviada somente houvesse símbolos”, explicou-me na sequência. “A diferença entre signo e símbolo é mínima, mas foi a partir daí que começamos a inventar nossos caracteres atuais (ocidentais). As letras a, b, c, etc.”. Quanta cultura!!!! “Mas o que quer dizer aqueles desenhos, quero dizer, escrita, Hilário?” Perguntei, humildemente. E ele disse ter ido mais longe do que o Paulo Leminski, naquele livro O Catatau, em relação ao monstro intersemiótico OCCAM. Fui, então, obrigado a pesquisar sobre o que era o tal 'monstro' e descobri que, no épico do poeta paranaense, as palavras perdem o sentido e até as letras entram em parafuso à medida que se aproximam da palavra OCCAM, que tem um significado muito particular dentro do texto.

Para quem não conhece a história do livro, Leminski coloca o filósofo René Descartes na nau de Maurício de Nassau, em nome da corte holandesa, mas Cartesius cai de boca na Diamba dos negros do navio em que viaja. E o pai do racionalismo pira e vê o mundo com outros olhos. Quando chega ao Brasil, então, é aquela loucura. Os tempos se fundem e se confundem, as ideias se liquefazem, o calor altera a percepção do filósofo e o nexo e a lógica interna do texto explodem. “Nosso romance experimental”, diz Mertz, fazendo apologia do Brasil e de seu conterrâneo paranaense.
Dar um passo além de Leminski, no entanto, para Hilário Mertz, é transformar os próprios tipos das letras, sua cor, textura, etc. em coisa. Quer dizer, a palavra não fala de outra coisa. Ela é por si só. Uma imagem que não precisa de explicação para ser. “A arte moderna ensinou”, diz o sábio Mertz, “que uma mancha de tinta não precisa representar nada. Ela é uma mancha de tinta e pronto. Ela vale pelo o que ela é”, pontua. “Kandinski, Klee, Mondrian não estavam querendo representar nada, imitar coisa alguma, como faziam os pintores antes do modernismo. Mas mostrar que aquilo que faziam era tanto matéria quanto ideia”. Confesso que preciso estudar mais sobre esses assuntos, mas consegui capturar um pouco daquilo que ele me falava. “O problema”, comentei com ele, “é que além de desenhos, tais desenhos são coloridos”. “Como compreender tal escritura? Melhor, como decifrar tais imagens?”. E ele me respondeu em sua última e derradeira resposta: “você não viu nada”. Isso me intrigou ainda mais. Que sujeito complicado!!!! Decidi olhar pela última vez a carta-enigma enviada por Hilário Mertz, para acabar de vez com tamanho suspense. Ou eu entendia o que aquilo queria dizer, de uma vez por todas, ou esquecia daquilo e ia assistir ao Big Brother, postar no facebook ou fazer qualquer outra coisa de inútil. Então, para surpresa geral, não havia mais nada pintado, desenhado ou escrito naquele papel que ele havia anteriormente enviado. Estava branco e vazio. Possivelmente ele deve ter usado uma tinta capaz de desaparecer do papel depois de algum tempo exposta à luz. Só pode ser. Ele é filósofo transcendente e acredita no além, mas eu sou um pobre ateu que desacredito até do descrédito. O que pensar, então? Que aquilo era uma revelação? Ainda me lembro que as imagens começavam, do alto, com um desenho que parecia um peixe, havia um sinal de soma e, após este sinal, uma circunferência. Disso resultava um olho que poderia resultar em uma frase, ou significar algo, mas eu não sou criptógrafo, apenas um curioso. O fato da imagem ter se apagado, me trouxe intranquilidade. Me sinto preso na armadilha conceitual de Hilário Mertz e sem condição de me desvencilhar dela. O branco da página tornou-se a água de um aquário. E eu nunca mais poderei me libertar desta condição, uma vez que as pistas que levavam de volta às imagens do mundo foram apagadas. E meu olho, como um peixe de aquário, move-se pra lá e pra cá, sem poder mais sair do lugar.